No artigo da última semana ponderei que, mesmo com tantas nuances, a atual crise política endossa uma grande certeza: a completa ruína do nosso sistema partidário e eleitoral. Hoje, avançando no tema, quero dar nome e sobrenome ao nosso problema político central, matriz de todos os outros: presidencialismo de coalização. Se alguém ainda tinha dúvida das contradições e da falência desse modelo, creio que elas acabaram diante de tudo o que estamos vivendo nos últimos meses.
Já enumerei algumas consequências desse regime: o governo se elege de maneira dissociada do parlamento, em eleições concomitantes, mas independentes; a base de apoio majoritária precisa ser formada num momento posterior, carente de legitimação popular e de um programa que dê sentido à unidade; logo, sem afinidade programática e sem interdependência institucional, resta o pragmatismo – donde surgem as piores formas de fisiologismo, clientelismo e corrupção. É a tempestade perfeita, ou um círculo vicioso muito bem engendrado para produzir atribulações.
Outra dinâmica nefasta do presidencialismo é a concentração de poder. As funções ordinárias do Executivo já não são poucas. Mas o presidente da República, ao precisar barganhar a maioria de deputados e senadores, passa a influenciar também nas duas casas parlamentares. Cabe a ele ainda escolher os ministros do Supremo Tribunal Federal e o chefe do Ministério Público. Tem o direito de editar Medidas Provisórias – o que, na prática, significa legislar. Então, veja-se: além de comandar o Executivo, o presidente interfere no Legislativo, no Judiciário e no Ministério Público, sem falar nas agências de regulação e nos inúmeros cargos que permitem aparelhar a máquina pública. Ninguém, numa democracia, pode e tampouco consegue ter tantos e tamanhos poderes. Não tem como isso acabar bem.
Como se vê, está praticamente tudo desordenado, do nascedouro da participação direta da população ao exercício da delegação que dela advém. Tanto é assim que, desde a redemocratização, já passamos por muitos percalços. Dois presidentes foram retirados do poder por impeachment, outros dois ficaram expostos a isso e o atual exerce o cargo de maneira periclitante. O presidencialismo não sabe lidar com substituições fora do pleito eleitoral, a não ser por processos traumáticos e desgastantes. Diante de tudo isso, a instabilidade virou ordinária na vida política nacional, o que repercute diretamente no ambiente econômico e na credibilidade internacional do país. Os ciclos de normalidade são fugazes e excepcionais. A regra é o turbilhão.
O presidencialismo, por si só, está em desuso na maioria das democracias desenvolvidas. A ideia de coalizão, atributo agregado ao nosso modelo, torna ainda mais ineficientes suas intenções. Claro que desvios de ordem moral não podem ser debitados às regras do jogo. A corrupção é fruto, em primeiríssimo lugar, da adesão de pessoas aos malfeitos. Tanto é assim que, em maior ou menor intensidade, essa chaga está presente no mundo todo. É indesculpável sob qualquer aspecto, portanto. Mas o sistema pode, aí sim, direcionar para as virtudes ou para os vícios da política. E, no nosso caso, aponta para a segunda opção.
É por isso que o combate à corrupção, apenas ele, não conseguirá sanar os nossos problemas. Seria inocência pensar assim. Em linguagem popular: o furo é mais embaixo. O processo de depuração ética e política deve ocorrer até o fim, contemplando apuração rigorosa e punição dos culpados. É hora de evoluir na transparência do serviço público, na restrição dos privilégios e na ampliação dos controles internos da administração. Mas precisamos ir além da consequência, mexendo nas regras que fazem nascer e facilitam, quando não estimulam, tamanhos desvios. Caso contrário, governo após governo, por mais sacrossanto ou bem-intencionado que seja o presidente, essa mesma dinâmica vai continuar agindo de maneira absoluta.
É por isso que, sincera e honestamente, não acredito mais em saída definitiva da crise por meio deste presidencialismo de coalização que aí está, pois ele sempre nos joga para um ambiente de irresponsabilidades, interesses e desmandos. Não estranhem se, nas eleições do próximo ano, surgirem com força os “salvadores da Pátria” – sejam à esquerda, à direita ou descompromissados –, com um discurso fácil que soará como música para uma população cansada e descrente. E o estrago, que já é enorme, poderá durar gerações até ser consertado. Um presidente certo num modelo errado, concentrador de poder, já é muito ruim. Um presidente errado num modelo errado será ainda pior.
Tomara que isso não ocorra. Mas, para que o caldo não entorne ainda mais, haveremos de passar por uma profunda reforma política – que só será possível por meio da convocação de uma Assembleia Constituinte exclusiva, em paralelo às eleições do próximo ano. E chegou a hora, sim, de falar novamente em parlamentarismo ou, no mínimo, num modelo completamente diferente de presidencialismo. Uma crise deste tamanho não será resolvida apenas com analgésicos. Um novo Brasil institucional precisa ser reconstruído, e essa obra tem de começar o quanto antes.
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