No cenário político brasileiro, há pelo menos duas grandes evidências. A primeira é a necessidade de uma reforma política – mas não superficial ou aleatória, e sim profunda e coerente com o que a sociedade espera. É o que alguns estão chamando de nova política, que não pode ser uma renovação pura e simples, senão uma oxigenação de ideias e posturas. A segunda evidência é a inviabilidade de o atual Congresso Nacional, em virtude de sua falta de credibilidade, levar adiante uma proposta de reforma, tampouco mudanças pontuais. Mas, paradoxalmente, é isso que está acontecendo – vide a famigerada ideia do “distritão”, que é um benefício direto aos atuais detentores de cargos legislativos.
O “distritão” tem um apelo de aparente justiça, qual seja o de eleger deputados pela ordem direta do número de votos de cada candidato. Só que tal modificação, sem mexer em outras regras do sistema, vai relegar ainda mais os partidos políticos e beneficiar o culto à personalidade e ao individualismo. Como a legenda não terá mais qualquer impacto na eleição para deputado, tendem a eleger-se os atuais parlamentares, que já possuem uma grande estrutura de base, ou celebridades que são conhecidas por outros meios. É a proposta perfeita para quem já detém cargos eletivos, porque necessariamente vai reduzir o número de candidatos e aumentar o preço das campanhas.
Vamos falar seriamente: facilitar a vida dos atuais mandatários é o grande objetivo dessa proposta. E, já por isso, ela é completamente despropositada. Chega a ser um acinte contra o país depois de todos os protestos da população nas ruas. Ora, dentro do desgaste em que se encontra o Congresso Nacional, tiraram da cartola um projeto com a aparência de boas intenções, mas que na verdade protege e beneficia quem já tem cargos. Eu diria que é quase um impeditivo para a renovação, sendo muito provável, a prevalecer essa intenção, que dois terços do parlamento continuem absolutamente o mesmo. E isso pode acontecer sem que boa parte da população perceba, o que é ainda mais grave.
Essa proposta é agravada, no caso concreto, pela intenção de fazer vigorar o financiamento público de campanha. Ora, não há dúvida de que o modelo de financiamento privado empresarial não deu certo, estando por trás de grande parte dos esquemas de corrupção revelados nos últimos anos. Talvez seja necessário qualificar a doação por pessoa física ou, então, fazer um modelo misto que migre gradativamente para o financiamento público. Mas não pode esse custeio surgir do erário assim, abruptamente, muito menos num momento em que o país vive uma grave crise financeira, sem capacidade para atender as necessidades essenciais em saúde, educação, segurança e logística. Percebam que o “distritão”, somado ao financiamento público, torna ainda mais fácil a vida de quem já é deputado. Além de ter uma estrutura de apoio já formada, agora ele receberia inclusive o dinheiro de sua campanha. É quase que uma “tempestade perfeita” contra os anseios da população.
O financiamento público também não funcionará adequadamente dentro deste atual modelo partidário, em que temos 35 partidos. Nos últimos anos, muitos surgiram apenas para ter acesso ao fundo partidário e negociar seus espaços de rádio e televisão. A mudança só teria sentido se houvesse uma disciplina mais clara para o surgimento das legendas, o que não parece ser o caso. É ainda mais esdrúxulo querer que siglas sem qualquer imersão social recebam verba pública para fazer campanhas eleitorais.
A propósito, se algo poderia ser feito agora, mesmo sem uma reforma política global, é criar uma regra de transição para reduzir o número de partidos no Brasil. E não seria preciso lançar uma cláusula de barreira em um tempo muito distante. Creio que esse espaço precisa ser encurtado, para que a diminuição aconteça já na próxima eleição. Talvez possa haver uma norma que não iniba o livre surgimento de agremiações, mas que restrinja severamente o acesso dessas instituições ao fundo partidário e a qualquer benefício público – a não ser que alcance tamanho e projeção para tanto.
Nosso presidencialismo de coalizão não consegue conviver com uma quantidade tão grande de siglas. Isso já está provado. Hoje temos 28 representações partidárias no Congresso Nacional. Não é difícil imaginar a dificuldade de estabelecer qualquer consenso. Na verdade, nem a ciência política enxerga espaço para tantas ideologias. Essa redução, portanto, precisa ser mais rápida e criteriosa. Junto dela, pode vir o fim das coligações nas eleições proporcionais (Legislativo), pois não há qualquer sentido numa aliança que não seja para a governabilidade (Executivo).
Ainda abordando propostas que poderiam avançar mesmo fora de uma grande reforma política, cito o fim dos suplentes de senador. No início deste ano, quase 20% das cadeiras do Senado não eram ocupadas por titulares. Isso leva a Casa, que tem tantos feitos importantes ao longo de sua história, a ter menor expressão, prestígio e produtividade. Chega a ser constrangedor para o Senado Federal. Além disso, o eleitor não vota no suplente, sequer o conhece. A substituição de um senador pode ocorrer pelo próximo colocado na eleição, jamais por uma figura que muitas vezes é praticamente anônima para a opinião pública.
Cito também, no mesmo aspecto, o fim da reeleição. Isso avançou e precisa consolidar-se. Já está provado que, no Brasil, esse instituto não funcionou. Pelo contrário, motivou o acontecimento de muitos desvios. Uma alternativa viável é um mandato um pouco maior, podendo ser de cinco anos. Por fim, penso que tenha chegado a hora de discutir também a obrigatoriedade do voto. Sei que muitos entendem ser necessária essa exigência, mas a mim já soa como um dever despropositado, pois tende a gerar muito mais um voto sem critério e até irresponsável do que uma participação efetivamente cidadã.
Vejo agora o presidente Michel Temer dando indícios de propor uma experiência de parlamentarismo ainda em seu mandato. Sinceramente, é uma proposta ousada demais para prosperar em um ambiente político mergulhado em descrédito e desconfiança. De qualquer modo, a discussão é válida e produtiva, pois mudar o sistema de governo é questão central para mexer na lógica política do país, que tem crises com data marcada, provoca sua própria instabilidade e não estimula a corresponsabilidade dos poderes. Sim, precisamos voltar a falar de parlamentarismo, como fez a maior parte dos países desenvolvidos. – e, nesse sentido, eu concordo plenamente com a pauta, mas apenas após mudarmos profundamente o nosso sistema partidário e o sistema eleitoral.
Concluo reforçando que o “distritão” é uma proposta casuística, corporativa e que quer dificultar a renovação do Congresso Nacional. A população não pode deixar que essa ideia prospere. O que deveríamos ter para 2018 é o voto distrital puro ou misto. Ou, o que seria melhor ainda, a convocação de uma assembleia constituinte revisora exclusiva, com missões específicas e data para começar e terminar, sem que seus membros pudessem concorrer na eleição normal. Isto é, um grupo de pessoas convocadas especificamente para reformar a constituição, inclusive em seu regramento político. Sem isso, provavelmente continuaremos vendo esses remendos de reformas, cujos interesses impedem uma reforma política propriamente dita.
Portanto, não ao “distritão” e sim à assembleia constituinte revisora exclusiva!
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