A situação dos estados brasileiros chegou a tamanha insustentabilidade financeira, em primeiro lugar, por problemas de gestão. Essa culpa não pode ser terceirizada. Enquanto algumas gestões agiram com responsabilidade fiscal, outras tantas, independente da vertente partidária, descuidaram do equilíbrio das contas, aumentaram os gastos sem receitas correspondentes e permitiram o descontrole gerencial da administração. O mesmo vale para os parlamentos. Isso é da política: quando a demagogia e o populismo falam mais alto, pode até ocorrer uma vitória momentânea e circunstancial de um grupo, mas o povo – no sentido mais amplo da palavra – sai perdendo, mesmo que nem perceba de imediato. Muitos estados, portanto, desarrumaram a própria casa.
Há fatores, porém, que influenciaram decisivamente no agravamento da crise sem que tenham sido causados ou sequer agravados pelos governos estaduais. Cito os dois exemplos mais graves, que decorrem das contradições do federalismo brasileiro: a falta de regulamentação dos ressarcimentos previstos na Lei Kandir, aprovada em 1996, e falta de atualização dos indicadores da renegociação da dívida, assinada em 1998.
A chamada Lei Kandir foi criada para estimular as exportações por meio da desoneração. A ideia, em si, é meritória – tanto que, de fato, fez melhorar a balança comercial brasileira. Mas, conforme a previsão inicial, os estados seriam ressarcidos em 50% das receitas que perderiam. Só que isso acabou não acontecendo. A ausência de uma normativa regulamentadora desse ressarcimento fez com que a União passasse a dispor sozinha sobre o assunto, deixando as unidades da Federação sem alternativa. O resultado é que estados exportadores foram punidos em virtude dessa vocação que possuem, quando o certo seria exatamente o contrário.
Há cálculos em diversas dimensões dando conta da perda de receitas por falta de regulamentação da Lei Kandir. Mas peguemos o exemplo do Rio Grande do Sul: segundo a Secretaria da Fazenda, o estado já acumulou perdas aproximadas a R$ 50 bilhões. Esse número é de tal importância que, se houvesse regressado aos cofres gaúchos, seria suficiente para deixar as contas locais em situação de estabilidade.
Os estados entraram na Justiça a respeito desse tema e, recentemente, em novembro do ano passado, o STF (Supremo Tribunal Federal) deu um ano para que a União estabeleça um mecanismo de compensação das perdas. Caso contrário, o próprio Judiciário irá arbitrar o valor e o modo de devolução. É difícil que se consiga reaver o passado, embora haja ações em julgamento nesse sentido. Importante é que a mobilização em torno do tema cresceu muito, e a União, seja por pressão política ou por decisão judicial, terá que pontuar essa grande lacuna – ou rombo – aberta na gestão dos estados.
A renegociação das dívidas estaduais tem um viés diferente, mas que também acabou invertendo o sentido em proteção da União. A repactuação firmada em 98 foi positiva para os estados endividados, pois permitiu que todos tivessem um fôlego financeiro, com possibilidade de replanejar o fluxo e os gastos. Os contratos previam prazo de pagamento de 30 anos, juros que variavam de 6% a 9% anuais e a atualização monetária calculada mensalmente com base no IGP-DI. As condições, para a época, eram boas.
Mas a realidade macroeconômica foi mudando, e o índice então utilizado passou a ser claramente desvantajoso – tanto que deixou de ser parâmetro até mesmo para o mercado privado. Se, por exemplo, o BNDES emprestasse para uma empresa, cobraria juros em patamar menor ao exigido pela União no contrato de federalização. Isso evoluiu apenas há pouco tempo, em 2015, quando o índice foi substituído pelo IPCA mais 4% ao ano, além do surgimento de um tempo de carência. Todavia, essa demora na regularização deixou um lastro de problemas para os estados.
Os dois projetos eram bons para o país e para a própria população, pois previam o estímulo da economia. Fui relator de ambos como deputado federal. Entretanto, foram desvirtuados ao longo do tempo. E servem para mostrar o centro do problema do pacto federativo: definir as atribuições e as respectivas fontes de financiamento de cada ente federado. Isto é, quem executa qual função e de onde vem o dinheiro para pagar. Dar a César o que é de César, como diz a Bíblia. Ou, nesse caso, dar aos estados o que é dos estados.
É por não ter clareza a respeito dessa questão que a carga tributária brasileira exorbita a capacidade de pagamento do setor produtivo e da sociedade. Os estados não devem desistir de buscar os valores relativos à Lei Kandir, ao mesmo tempo em que repactuam suas dívidas federalizadas e negociam um regime de recuperação fiscal. São movimentos paralelos, todos na mesma direção: por meio do reequilíbrio financeiro dos estados, ajudar a reequilibrar também o país.
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